domingo, 18 de julho de 2010

Cabeça de matador - o que leva uma pessoa a matar?

A ponta da faca, o dedo no gatilho, as mãos que massacram – a vida do outro está por um fio. É tênue seu condutor até o fim, mas quem poderia carregar o peso da palavra “matar”? E a pergunta não cala: por quê?

Qualquer um poderia se render a um impulso, é o que diz a psicóloga jurídica Tatiana Seabra. Depois de algum tempo trabalhando em Alcaçuz, ela já ouviu de tudo. Nos presídios, há quem exiba com orgulho de suas matanças, quem se arrependa, quem negue e quem prefira não falar a respeito.

Na Penitenciária Estadual de Parnamirim, um homem confessa um crime. Três tiros e outro estava morto. É uma história antiga de rixa e ameaças. Tudo começou quando um quis montar um ponto comercial ao lado do que pertencia ao outro, no centro da cidade.

Logo vieram as acusações: “Você vai roubar meus clientes”, e a resposta ferina “Aqui tem espaço pra todo mundo. Tá com medo da concorrência?”. O que era mera implicância terminou em inimizade e, mais tarde, em discussão braba. “Eu sou matador e vou pegar você”, um dos homens ameaça. O outro pensa: é matar ou morrer. E matou.

“Quando ele falou, pensei na minha família. Sou casado e tenho duas filhas, sabe? Nem sei o que ele poderia fazer comigo ou uma delas. Tava armado e meti bala. Tive ódio dele. Nem pena nem remorso, não senti nada”, relata. Foram precisos cinco meses para que ele começasse a se arrepender. Na cadeia, diz, aprendeu que existem duas coisas que não tem preço: a vida e a liberdade.

Está preso há três anos. “Me pegaram em flagrante. Me condenaram a 18 anos de pena, mas o advogado conseguiu diminuir pra quatro”. Ele matou apenas um, mas sabe de outros que perderam as contas de quantos mandaram para o cemitério. Houve quem matou por conta de um cigarro ou de um copo de cana.

Impulso incontrolável, crueldade ou loucura; qual deles ocupa mais espaço nas cadeias? Na Provisória da Zona Norte, para onde vão aqueles considerados inimputáveis pela Justiça, os pacientes chegam a 44. Além deles, 14 outros vão mensalmente ao ambulatório do local para avaliação de saúde mental e recebimento de medicação.

Foto: Elpídio Júnior
oThereza Magalhães, psicóloga.
Entre os internos estão, em sua maioria, esquizofrênicos, usuários de drogas e pedófilos. De acordo com a psicóloga local, Thereza Magalhães, muitos são de difícil recuperação. A droga, revela, é o que mais castiga. Quando estão sob o efeito de psicotrópicos ou em crise de abstinência, o descontrole é comum e o usuário pode terminar por matar alguém.

O uso deste tipo de substância, inclusive, está relacionado a fatores sociais que colaboram para a formação de uma personalidade agressiva. O primeiro deles chega a ser lugar comum: um rapaz pobre, que vive em meio à violência e/ou não recebe atenção dos pais, pode perder a noção do valor da vida.

“Por outro lado, o garoto de classe média a alta que recebe nas mãos tudo o que quer, e cujos pais não param em casa; este também pode ‘coisificar’ as pessoas – entender que gente vale tanto quanto um produto que se encontra nas lojas”, afirma a psicóloga Thereza Magalhães.

Apesar de tudo, a personalidade do homicida é mais intrincada. A Organização Mundial de Saúde diagnosticou um crescimento de 60% nos índices de homicídios em 18 países desenvolvidos, definindo como causas para a violência fatores de ordem biológica, psicológica ou social.

Homicídio e doenças mentais
O tema “doenças mentais” sempre vem à tona quando se fala em homicídio. De acordo com a psicóloga jurídica Tatiana Seabra, algumas patologias favorecem o desenvolvimento de um comportamento agressivo. A principal delas seria o distúrbio de personalidade. Seabra revela que aproximadamente 50% dos criminosos violentos portadores de doenças mentais sofrem desta desordem.
Foto: Elpídio Júnior
"Não podemos, contudo, pensar que todo doente mental é um assassino em potencial", disse Tatiana Seabra, psicóloga jurídica.

Em seguida, viria o atraso mental, com 30% dos diagnósticos para inimputáveis, e a epilepsia, com 17,5%. Esta última, conhecida pelos ataques convulsivos, também costuma gerar um comportamento irritado, explosivo, agressivo ou com instabilidade de humor.

O epilético pode cometer delito em razão de um automatismo psicomotor (baixa da consciência) da epilepsia parcial. Além disso, se tem registros de “fúria” em estudos da patologia. A maior probabilidade de comportamento agressivo ou homicida se dá em casos de confusão prolongados após uma crise generalizada em epiléticos crônicos.

“De qualquer forma, os esquizofrênicos e psicopatas têm maiores chances de se tornarem homicidas”, define Seabra. Ela diz ainda que, muitas vezes, a doença mental altera a personalidade do paciente, de modo que, quanto mais grave a patologia, maiores os prejuízos ao sistema cognitivo.

“Não podemos, contudo, pensar que todo doente mental é um assassino em potencial. A questão dos homicídios é mais ampla e deve ser entendida como apenas ‘a ponta do iceberg’ do problema da violência urbana. Há muito mais por trás”, conclui a psicóloga.

Foto: Elpídio Júnior
Jeferson Cavalcante, professor da pós-graduação em neuroanatomia da UFRN.

Homicídios “normais” e “anormais”
Certamente os portadores de distúrbios mentais em geral não são o grupo mais violento da sociedade. Quanto aos homicidas, eles podem ser classificados em dois grupos. O primeiro diz respeito aqueles chamados “anormais”. A denominação se refere às condições atípicas que levaram o sujeito a cometer o crime.

Uma discussão mais acalorada, um choque violento ou uma grande decepção podem desencadear o desejo instantâneo de matar. Não é difícil ceder a este instinto. Qualquer animal selvagem, por menos desenvolvido que seja seu cérebro, tem a percepção nítida da vida e da morte.

“Quando alguém vai em frente em seu impulso e mata outra pessoa, a reação seguinte normalmente é o arrependimento. Sob esta ótica, qualquer um corre o risco de cometer tal delito. Por outro lado, há quem permaneça frio depois do crime. Há quem mate por prazer”, explica o professor da pós-graduação em neuroanatomia da UFRN, Jeferson Cavalcante.

Quando o indivíduo já desenvolveu o hábito de matar, pode ser enquadrado como homicida normal. Mas a frieza que costuma acompanhar estes atos, além de distúrbios psicológicos ou influências ambientais, se espelha ainda na atividade cerebral.

Cabeça de matador: fator biológico
Cometendo crimes habituais ou não, uma mente doentia pode advir de fatores biológicos. Segundo Jeferson Cavalcante, a principal região ligada ao comportamento agressivo é a do córtex pré-frontal. É nesta região que se desenvolve a consciência humana, bem como é aí que são processadas as noções de certo e errado.

Para provar o que diz, ele traz à tona o exemplo de Phineas Gage, operário norte-americano que teve seu cérebro perfurado em um acidente com explosivos. Em um dado procedimento, ele estava encarregado de vazar a pólvora para um buraco aberto em uma rocha. Quando foi fazê-lo, no entanto, uma faísca fez a pólvora explodir. Um projétil foi arremessado contra o rosto de Gage, perfurando sua bochecha.

Foto: Elpídio Júnior
Segundo Jeferson Cavalcante, a principal região ligada ao comportamento agressivo é a do córtex pré-frontal.

O olho de Cage foi atingido, bem como a parte frontal de seu cérebro. Surpreendentemente, após o incidente, ele conseguiu sobreviver. Foi encaminhado ao hospital depois de ter perdido a consciência e ser acometido por convulsões. Apesar de tudo, Gage não foi o mesmo depois da explosão. Por ter lesionado o córtex pré-frontal, tornou-se mais agressivo e impetuoso.

“Em casos de acidente ou em procedimentos como a lobotomia, em que parte do cérebro é literalmente desativada, percebemos como a atividade do lobo frontal influencia o comportamento. Mas existem situações em que o funcionamento daquela área se dá de forma irregular. Assim, não conseguimos prever seu potencial destrutivo”, alerta Cavalcante.

De acordo com ele, talvez isso possa explicar como uma pessoa aparentemente normal possa chegar a cometer crimes bárbaros. Estes indivíduos teriam, de certa forma, um conjunto cerebral diferente do das pessoas ditas normais. O processo pelo qual fazem julgamentos (bom e mal, certo e errado) é outro.

Foto: Elpídio Júnior
"A massa encefálica funciona como uma orquestra. Qualquer desarranjo prejudica a melodia", assegura.
Ainda assim, o professor insiste que eles têm consciência de que seus atos não são socialmente aceitáveis. “Um criminoso sabe que, se matar, vai para a cadeia. Mesmo assim ele se vê no direito de fazer sso – não porque ele está acima da lei, mas porque seus instintos falam mais alto”.

Cavalcante toma por base um comportamento simples. Perceba que, mesmo de regime, uma moça pode não resistir à tentação de comer um pedaço de chocolate. De forma parecida, alguns assassinos não controlam o impulso de matar. A adrenalina e serotonina, hormônios que proporcionam sensação de empolgação e prazer, alimentam seus cérebros.

“Falamos do córtex pré-frontal, mas outras áreas estão envolvidas. A massa encefálica funciona como uma orquestra. Qualquer desarranjo prejudica a melodia”, assegura. As desordens podem ganhar proporção ainda maior a partir da adolescência, quando os jovens são inundados por hormônios e, constantemente, sentem necessidade de auto afirmação.

Independente do gênero, nível de escolaridade ou classe social; os adolescentes apresentam comportamento mais impulsivo e inconsequente. Quando amparados por uma estrutura familiar sólida, conseguem superar esta fase com maior facilidade. Se vivem em um contexto violento e não encontram estabilidade emocional, a tendência é que sucumbam.

“É importante não generalizar. Cada pessoa é um mundo. Mesmo assim, quando um jovem subverte esta lógica, é notícia nos jornais”, Cavalcante comenta. Ele diz ainda que aproximadamente 60% dos criminosos com histórico familiar problemático se tornam assassinos.
Foto: Elpídio Júnior
Que tem a ver o cérebro com a personalidade? Para Cavalcante, tudo.

São exatamente as vivências que, até a maturidade, moldam a forma pela qual os sujeitos enxergam o mundo. Tanto os fatores psicológicos quanto sociais interferem no modo como a consciência de um indivíduo se desenvolve. “Diante de certos crimes, você se pergunta: ele não tem consciência do que fez? Lhe asseguro que tem, mas é difícil compreender. A consciência dele é completamente diferente da sua”, certifica.

Que tem a ver o cérebro com a personalidade? Para Cavalcante, tudo. “Muitos dizem que é reducionista falar assim, mas acredito que você é o que seu cérebro é. Ele condiciona todos os seus sentimentos, pensamentos e ações são condicionados por ele”.

[Na Penitenciária Estadual de Parnamirim, um homem parte para seu trabalho na cozinha. Caminha um tanto curvado. Lembra da mulher e das filhas. Ninguém foi poupado. "Não matarás" - o quinto mandamento encravado no seu caminho de pedras].
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